quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Contam por aí...


A morte e o médico
Ernani Ssó






Há muito tempo, ou amanhã de amanhã, quando os bichos falavam, um rapaz ganhou


uma barrica de cerveja, depois de trabalhar anos numa cervejaria. Seguiu para casa, com a barrica nas costas. Como ela pesava muito e ele estava alegre, pensou em parar e beber um pouco. Mas não queria fazer isso sozinho. Então pensou:


- Vou convidar o primeiro que encontrar.


Numa curva da estrada, deu com uma mulher cadavérica, meio amarelada.


- Bom dia, senhora. Quer beber um pouco de cerveja comigo?


- Preferia comer, mas...


- Não tenho nada pra comer. Mas quem é a senhora? Gostaria de saber com quem bebo.


- Eu sou a Fome.


- Não quero beber com a senhora. A senhora sempre persegue os pobres. Não é justa.


O rapaz seguiu em frente. O sol estava cada vez mais forte e a barrica, cada vez mais pesada. O rapaz já pensava até em beber sozinho quando encontrou um homem muito forte e com jeito de mandão.


- Bom dia, senhor. Quer beber um pouco de cerveja comigo?


- Não costumo beber em serviço, mas aceito. Está muito quente.


- Quem é o senhor? Gostaria de saber com quem bebo.


- Eu sou o Destino.


- Sinto muito, mas não posso beber com o senhor. O senhor não é justo. Complica a vida dos pobres, facilita a vida dos ricos.


Bastante desanimado, o rapaz seguiu em frente. Não agüentava mais o peso da barrica. Não agüentava mais o calor do sol. Resolveu então sentar embaixo de uma árvore, na beira da estrada.


Nisso viu se aproximando uma pessoa muito alta e muito magra, vestida de preto. Gritou para ela:


- Bom dia. Quer beber um pouco de cerveja comigo?


- Aceito.


- Quem é você? Quero saber com quem bebo.


- Eu sou a Morte.


Mas nem precisava dizer. Quando ela chegou perto, o rapaz viu o esqueleto sob as vestes pretas, o capuz que escondia a caveira e a gadanha na mão direita.


- Sente aqui comigo. Com você eu posso beber. Você é justa. Você trata pobres e ricos por igual.


- Eu nunca sento, mas, pra beber uma cerveja, vou abrir uma exceção.


Beberam, conversaram. Quando o rapaz se preparou para ir embora, a Morte disse:


- Você foi muito gentil comigo. Em troca, vou tornar você rico.


- Como?


- Você será médico de hoje em diante, Vou tornar esta cerveja mágica. Um golinho apenas e a pessoa ficará curada.


- Mas a barrica não é muito grande. Logo a cerveja acabará.


- Quando a barrica estiver pela metade, encha-a de água. Garanto que terá o mesmo efeito. E o mesmo sabor.


- Ótimo – o rapaz disse, se levantando.


- Mas tem uma condição – a Morte avisou – Quando você for visitar um doente, se eu estiver à cabeceira da cama, não dê cerveja a ele. Porque esse eu tenho de levar. Se não cumprir o trato, você é que será levado.


- Certo – o rapaz disse e apertou a mão da Morte.


O rapaz se transformou num médico rico e famoso. Não era pra menos. Ele não errava nunca. Mal entrava no quarto de um doente, mal botava o olho nele, sabia se o sujeito escapava ou se a família tinha de comprar o caixão. Ninguém nem sonhava que o rapaz pudesse enxergar a Morte.


O que mais impressionava eram as curas. As pessoas às vezes estavam mal havia dias, ou semanas. Aí o rapaz dava um golinho do seu remédio e o doente pulava da cama na mesma hora, como se houvesse se deitado apenas pra uma soneca. E ainda dizia, lambendo os bigodes:


- O remédio até tem gosto de cerveja.


A fama do rapaz era tanta que um dia o rei mandou chamá-lo:


- Minha filha está doente, muito doente. Os médicos da corte não sabem mais o que fazer. Tentaram todos os tratamentos e nada funcionou. O senhor é minha última esperança.


- Verei o que posso fazer, majestade.


- Se o senhor curar a princesa, eu lhe darei metade do reino e o casarei com ela.


O rapaz tremeu, ao ouvir falar em casamento. Conhecia a fama da princesa: além de boa pessoa, era linda e alegre. Por um instante o rapaz ficou sonhando com a felicidade que viveriam.


O rei o levou ao quarto da princesa.


A rainha e duas damas estavam ao lado da cama. E, à cabeceira, a Morte de pé, a caveira sob o capuz apoiada na gadanha. Cochilava.


O rapaz já tinha visto antes a Morte cochilando. Mas ela sempre acordava a tempo. Não atrasava um segundo.


O rapaz olhou para a princesa. Pálida, abatida. Ela olhou para ele com uma dor tão grande que ele se sentiu mal.


O rapaz olhou para a Morte. Pela primeira vez achou que ela era injusta. De que adiantava ela o ter feito rico se agora ia perder o amor da princesa?


O rei disse, impaciente:


- E então?


O rapaz olhou a Morte de novo. Ela continuava cochilando, meio escondida pelas sombras. Então o rapaz se decidiu. Falou baixinho para o rei:


- Mande virar a cama, majestade. A cabeceira para os pés, os pés para a cabeceira. Mas sem barulho nenhum.


Assim foi feito. A Morte não percebeu nada. O rapaz, mais que depressa, deu um golinho de cerveja para a princesa. Na mesma hora a princesa se levantou, sem palidez, sem abatimento – linda como a Lua.


O rei deu um grito de alegria.


A Morte acordou e viu a cama ao contrário. Não disse nada, apenas olhou para o rapaz e levantou a gadanha.


- Não! – ele falou.


- O que foi que combinamos?


- Mas acabei de ganhar uma esposa e metade de um reino!


- Agora seu reino não é deste mundo – a Morte disse e o tocou com a ponta da gadanha.


O rei, a rainha, a princesa e as damas levaram algum tempo para descobrir que o médico caíra morto.






SSÓ, Ernani. Contos da morte morrida: narrativas do folclore. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2007.








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